quinta-feira, 3 de julho de 2008

Fronteiras do Pensamento trouxe Ayaan Hirsi Ali a Porto Alegre


Nada mais apropriado para lançar oficialmente este blog, que se pretende crítico, do que publicar as idéias de Ayaan Hirsi Ali, considerada uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela Revista Time.

Cabe, primeiramente, apresentar uma breve biografia, para situar aqueles que desconhecem a trajetória dela, que é um exemplo de superação e de luta pela liberdade de expressão.
Ayaan Hirsi Ali é uma africana, nascida na Somalia, que cresceu sob os preceitos da religião islâmica e dos costumes tribais da região. Em 1992, seu pai a prometeu em casamento para um primo distante, o qual a buscaria na Alemanha para morar com ele no Canadá. Chegando na Europa, ela teve certeza de que não queria viver subjugada a um homem que não amava, decidindo, então, fugir antes do matrimônio. Foi para Holanda, onde viveu como refugiada até obter a cidadania holandesa. Posteriormente, formou-se em ciência política, integrou o parlamento holandês e passou a lutar pelos direitos da mulher muçulmana. Atualmente, vive nos Estados Unidos, com seguranças particulares, pois foi jurada de morte pelos fundamentalistas islâmicos. É autora dos livros Infiel e A Virgem na Jaula.


Uma mulher de muita coragemcoletiva de imprensa de Ayaan Hirsi Ali


Cercada por seguranças, Ayaan Hirsi Ali chegou ao Hotel Sheraton, em Porto Alegre, com mais de uma hora de atraso do horário marcado para o início da coletiva de imprensa. As assessoras do evento disseram que foi por causa do atraso no vôo, que vinha de São Paulo, mas soube pelos jornais que a levaram para passear pelo Palácio Piratini antes de chegar ao Hotel. Independentemente do motivo, a espera não desanimou, em momento algum, os jornalistas que lá estavam, todos ansiosos para ouvir as respostas daquela que ficou mundialmente conhecida por desafiar o Islã.

Pela impressão que tive, Ayaan pareceu bastante tímida e reservada, mas segura. Respondeu as questões dos jornalistas olhando nos olhos, sem titubear ou gaguejar. Tinha plena convicção do que estava falando. Também se mostrou muito atenta a tudo em sua volta e à tradução simultânea que o intérprete realizava para ela. O que mais impressiona é o contraponto entre a sua voz suave e aparência delicada, com rosto que lembra os traços de uma menina, e as suas ações e críticas contra os extremismos praticados pelos seguidores da religião islâmica.

Ayaan iniciou a coletiva falando sobre o momento em que passou a questionar o Islã, já que desde pequena foi criada e educada para seguir os preceitos dessa doutrina sem questionar a palavra de Alá. Contudo, após os ataques de 11 de setembro, nos EUA, passou a se perguntar: que tipo de religião é essa que age com extrema violência? A partir daí, percebeu que, ao repreender os atos praticados pelos seus irmãos de fé, não poderia mais ser considerada uma muçulmana.

Assim, começou a sua luta contra os abusos e opressões praticados em nome da religião. Embora já morasse na Holanda, fugida de um casamento arranjado pelo seu pai, Ayaan não estava predisposta a pregar contra os seus costumes até os desfechos de 11 de setembro. Antes disso, apenas vivia de uma forma um pouco mais ocidental do que os seus familiares suportariam – usando calças jeans, andando sem véu pelas ruas e estudando em uma universidade holandesa.

Além dos ataques aos EUA, seu contato com os ideais iluministas também fizeram-na repensar a teoria política pregada pelo Corão.
– Eu tento sempre fazer uma distinção entre as pessoas e as doutrinas muçulmanas. Os seguidores são capazes, na maioria das vezes, de viver em uma democracia, mas as normas políticas disseminadas pela religião são incompatíveis com o iluminismo e a doutrina liberal. Ela prega a submissão de todos a vontade de Deus: as mulheres devem ser obedientes e servis, os homossexuais devem morrer e os não-muçulmanos devem ser subjugados aos muçulmanos, os quais devem pregar por meio da palavra ou do uso de armas – afirmou Ayaan.

É a complexidade da religião islâmica, que segundo ela, deve ser compreendida pelos líderes ocidentais, pois só assim eles poderão ultrapassar a sua fase de apatia, e perceber que essa não é apenas uma religião diferente, que deve ser aceita. Ayaan clamou para que esses líderes ajudem na luta pela emancipação da mulher muçulmana e pela liberdade de expressão.
– É o multiculturalismo existente que permite a permanência de fundamentalistas que ferem os direitos humanos. Os ocidentais ignoram as condições em que vivem grande parte das mulheres e das crianças islâmicas, romanceando essa cultura tribal que, com certeza, não teriam coragem de aplicar aos seus filhos – criticou com veemência.

Um dos piores abusos cometidos em nome da religião é a mutilação do órgão genital feminino. Ayaan, que foi vítima dessa prática tribal, devido às crenças de sua avó, contou que é equivocado associar a extirpação do clitóris feminino com o islamismo, pois nem o Corão nem a Suna manifestam-se sobre esse aspecto. No entanto, declarou que países que seguem os preceitos desses livros acabam por adicionar a mutilação, a fim de garantir a castidade das mulheres até o casamento.
– Sem o clitóris a mulher perde a libido e, somada a costura da região genital, garante que ela se mantenha “intacta” até o casamento. Para acabar com isso é preciso atacar o dogma de que a virgindade é mais importante do que a vida dessas mulheres – combateu Ayaan sob o olhar de consentimento dos jornalistas presentes.

Embora tenha deixado claro que sua intenção não é pregar o ateísmo – mas sim lutar para que as pessoas possam se expressar e aceitar as idéias contrárias às suas, sem achar que devem matar os dissidentes – Ayaan, com a delicadeza que lhe é peculiar, questionou a fé em um ser superior. Por sua experiência de vida, afirmou ter passado a crer na teoria de que foi a humanidade que criou Deus, e não o contrário. (Para ver essa questão na íntegra acesse http://www.youtube.com/watch?v=NSb2hzbO4PU ).

Sobre a vida atribulada que leva, já que precisa viver rodeada de seguranças desde que foi jurada de morte, em 2004, ela garante que procura ter uma rotina normal:
– Dentro dos meus limites, faço tudo aquilo que as outras pessoas fazem, como sair com os amigos, passear, trabalhar.

Ao final da coletiva, que durou cerca de uma hora (e que, na minha opinião, deixou um gosto de ‘quero mais’) a determinada ex-muçulmana lembrou da amizade e dos conselhos de Salman Rushdie.
– Ele é um querido amigo que sempre me motiva para não ceder a pressão, seja ela das ameaças de morte que sofro, ou do fato de ter que andar com segurança pessoal. E não pretendo ceder – finalizou, resolutamente, Ayaan.

Antes de deixar a sala, discretamente, me dirigi a ela e pedi para que autografasse o livro Infiel (sua autobiografia), o qual li admirada. Como não poderia deixar de ser, ela sorriu e assinou a obra que, para o bem ou para o mal, a tornou conhecida no mundo inteiro.

PS: À noite, assisti à conferência do Fronteiras do Pensamento, na qual, além de Ayaan Hirsi Ali, o psicanalista brasileiro Rentato Mezan falou sobre os problemas do multiculturalismo e do fundamentalismo religioso. Mas esse será o tema de um próximo post.

Crédito da foto: Deborah Cattani

4 comentários:

Thais Sardá disse...

Que história maravilhosa a dessa mulher.

Julia Dantas disse...

quando vi o tamanho do post confesso que me assutei um pouco. mas tá tão bom de ler que cheguei no final e tb fiquei com gostinho de quero mais ;)

SANDRA PIRES disse...

Impressionante a análise dessa entrevista. Adorei o Blog. Mas lendo o texto, surgiram muitos questionamentos: Reconheço que pouco sei sobre o assunto, mas pelo que pude vislumbrar, desfilaram diante de mim as situações que vivencio no Brasil. E questiono: O islamismo, amparado em preceitos religiosos permite essa hedionda violência contra a mulher,e isso é de conhecimento público. Mas aqui, é permitida a violência contra a mulher, que é diária, contínua e também hedionda. Qual o amparo para essa conivência? Como explicar a violência sofrida por mulheres, principlamente das camadas mais pobres? Como explicar, que a violência é um caso de saúde pública, que afeta não só a mulher e sim a família inteira mas continua a acontecer a todo momento? Como explicar a existência dessa violência, quando no nosso país, existe legislação específica que protege a mulher dessa violência? Na Somália, a violência não está sufocada entre quatro paredes, não está
escondida pela dependência econômica, pela dependência psicológica. Lá, ela existe e o mundo tem conhecimento. Aqui a hipocrisia impera. A liberdade de expressão e de pensamento é podada desde o nascimento. Mas essa liberdade é defendida e alardeada a todo instante, como se ela fosse palpável. Mas que liberdade é essa que sufoca o grito de mulheres que sofrem humilhações e agressões a todo instante. Portanto: A Somália é lá ou aqui?

Anônimo disse...

É isso aí guria! Pena que eu não consegui armazenar o áudio pra te mandar ainda por causa do tamanho! De qualquer maneira, tua matéria ficou nota 10 :)
Bjos